Nossa Rede – Entrevista com Telma Weisz

23 de set de 2015 - Jornalismo

O nome de Telma Weisz costuma ser acompanhado de uma insígnia que não a agrada muito. Dela se diz que é a maior especialista brasileira em alfabetização, mas Telma rebate o título. Gosta de referir-se a si mesma como uma “didata”, uma entendedora profunda de aprendizagem. “Aqui no Brasil nem existe esse nome. Mas é isso que sou”. Educadora há 55 anos, Telma chorou quando descobriu, na década de 1980, a psicogênese, por meio de um livro da pesquisadora argentina Emilia Ferreiro. “Eu lia aquilo e pensava: como é que não vi isso antes?” Acabou virando uma militante fervorosa da causa. Esteve  na linha de frente de programas educacionais fundamentais para o país, como a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA) e agora encabeça o Projeto Ler e Escrever, da rede estadual de São Paulo, que vem alcançando índices para lá de exitosos. Mais de 95% das crianças paulistas de até 8 anos já estão alfabetizadas. Nesta entrevista, Telma — que será uma das pareceristas externas dos cadernos pedagógicos produzidos pelo projeto Nossa Rede — fala sobre a importância da formação continuada dos professores para o bom desempenho dos alunos em sala de aula e critica as faculdades de educação brasileiras, que insistem em tratar alfabetização como algo “menor”.

Telma Weisz participa de encontro do projeto Nossa Rede. Foto: Luciana Rios
Telma Weisz participa de encontro do projeto Nossa Rede. Foto: Luciana Rios

A taxa de reprovação dos estudantes no terceiro ano na rede municipal de Salvador é de 31,9%, de acordo com dados de 2014. São quase sete mil crianças que não aprenderam a ler e escrever adequadamente. E estamos numa capital do país.

TW – Em educação, essa história de estar num lugar rico ou num lugar pobre não faz diferença, sabe por que? Tem pobre em todo lugar. Não tem população rica, tem cidades ricas. O povo continua pobre e continua com dificuldade para aprender a ler. Na verdade, eles não têm essa dificuldade. A escola é que tem dificuldade para ensiná-los a ler.

Qual é o maior empecilho para que a alfabetização das crianças brasileiras ainda não aconteça a contento nas escolas públicas? Por que ainda é tão difícil fazer com que os meninos aprendam a ler e escrever?

TW – A educação em geral, não só a alfabetização, depende de um esforço permanente de melhoria da qualidade do trabalho do professor a partir daquilo que ele já faz, o que significa monitorar e formar ao longo do tempo todos os professores em todas as classes. Você tem que ter instrumentos para avaliar que permitam que você olhe como está cada situação e o que cada professor consegue ou não trabalhar. Há essa ideia de que: ‘ah, manda o professor para a universidade que ele vai melhorar…’, e ele não melhora. A universidade nem sequer se propõe a formar professores de sala de aula, principalmente dos anos iniciais. A universidade ainda forma professores especialistas, e olhe lá. A universidade acha que tem que formar pesquisadores, e não professores de sala de aula. As faculdades de educação, consideram formar um professor para a prática de alfabetização um trabalho menor. E elas não se sentem responsáveis pelos problemas educacionais do país.

E aí são as escolas que têm que dar conta dessa tarefa…

TW – As escolas têm que se virar nos trinta, sabe? Dar conta elas não conseguem dar, se não tiverem ajuda de fundamentação do trabalho que estão fazendo e de modelos didáticos claros e coerentes com a fundamentação teórica.

E aí é aquela frase que a senhora costuma repetir, de que “a sociedade não liga que as crianças pobres sejam analfabetas”.

TW – A sociedade brasileira é a sociedade da classe média que põe seus filhos na escola privada. Para eles, se os meninos pobres aprendem ou não, não faz diferença. E aí elas podem justificar que o pobre é burro, e por isso ele continua pobre.

A gente viveu alguns avanços sociais no Brasil nos últimos anos. Por que esse processo não aconteceu na educação básica de forma mais consistente e sistemática?

TW – Avançou um pouco, mas o problema é que esse avanço não tem lastro suficiente para ter uma continuidade, então ela dá uns pulinhos. A questão é que, quando um governo acaba, se joga sal em tudo que ele fez. Queima e joga sal. Então, por exemplo, quando nós fizemos o PROFA, era um programa que gastou dinheiro público, que poderia continuar nas próximas administrações independentemente da nossa presença. Só que o governo seguinte disse que não interessava nada que tinha sido feito pelo governo anterior. Ele ia fazer tudo novo. Não fez. Nem sequer conseguiu modificar o currículo, está falando de currículo agora, já 12 anos depois… Então, se houvesse realmente uma pressão da sociedade que conta, a que fala no jornal, na TV, isso já tinha andado. Mas a solidariedade da classe média com os pobres nesse país é baixíssima. E a população de classe média acha sim que os pobres são burros, e por isso eles não aprendem. Só que quando você faz um trabalho como o que a gente está fazendo em São Paulo, o Ler e Escrever, que você tem todos os meninos alfabetizados ao fim do terceiro ano e ao fim do segundo ano, e agora nós vamos ter no fim do primeiro ano… São as mesmas crianças do resto do país! Então o problema não é das crianças. Os meninos brasileiros são muito inteligentes, como todos os meninos do mundo.

Telma Weisz participa de encontro do projeto Nossa Rede. Foto: Luciana Rios
Telma Weisz participa de encontro do projeto Nossa Rede. Foto: Luciana Rios

Nos Grupos de Trabalho do projeto Nossa Rede, os educadores reclamaram muito de que às vezes numa mesma escola são adotados diferentes métodos de alfabetização. Qual é a importância de que haja uma orientação mais clara, uma direção única a ser seguida?

TW – É preciso ter clareza de como as crianças aprendem a ler, e a partir disso você tem que organizar o ensino. O problema é que botar uma etiqueta de construtivista não faz ninguém saber trabalhar. Muita gente, principalmente nas escolas particulares, tem essa etiqueta e por baixo dela não tem nada. Tem o mesmo ensino tradicional. O que eu acho é que os professores não devem ser obrigados a fazer o que não querem, mas a rede tem a obrigação de propor o que ela acha melhor. Dentro disso, os formadores precisam ganhar o coração e a mente dos professores. Você só faz isso quando eles começam a ver que dá certo. Enquanto eles não veem que o menino está aprendendo, eles desconfiam, e com razão, porque o que mais existiu na educação brasileira foram métodos milagrosos. Por isso, a gente insiste em dizer que o que nós fazemos não é um método. É na verdade uma posição didática que tem um conjunto de práticas já claramente definidas e testadas e que a gente pode compartilhar com os professores, mas não do tipo despejar na cabeça deles. Eles têm que reconstruir o trabalho que a gente faz por eles mesmo. E se não houver esse movimento de reconstruir, não há aprendizagem, porque você não ensina com a mão dos outros. Você só ensina quando aquilo que você está fazendo faz sentido para você.

O Nossa Rede vai construir conteúdo próprio para os estudantes. Qual é a importância de levar essa realidade cotidiana, essa identidade cultural, para dentro da sala de aula? Isso muda a forma como as crianças aprendem?

TW – Não muda. As crianças aprendem sempre do mesmo jeito. A forma pela qual você ensina, o processo de aprendizagem, é o mesmo. Agora, a depender do modo como você ensinar, você pode facilitar ou dificultar essa aprendizagem. O fato de ser familiar culturalmente é confortável para as crianças. É confortável e é estimulante. Agora, também vai depender do que o que você fizer com isso. Se você fizer uma cartilha e aí… vamos pegar uma palavra bem baiana, “moqueca”. Se for para fazer ‘Ma-me-mi-mó-mu-muqueca’, não tem nada de interessante nisso. Não é o sentido das palavras que faz isso. Agora, se eles estiverem lendo, ouvindo histórias sobre a cidade, aí é outra coisa. O resgate da cultura local sozinho não faz nada. É um respeito à população da região, mas não pode ser um fim em si mesmo. Mesmo porque, se você pensar, quando você põe as crianças na escola, você quer dar acesso à cultura universal. Se você vai partir da cultura local, ótimo, mas você não pode acabar aí.

Os professores também falaram bastante sobre a necessidade de que os cadernos pedagógicos possam atender meninos com diferentes saberes. Alguns educadores citaram casos de crianças que no 5o ano ainda não sabiam ler e escrever direito. Na prática, é como se as turmas fossem multisseriadas. Que tipos de atividades podem ser propostas para enfrentar essas situações?

TW – Isso não é o problema. Primeiro, a heterogeneidade na classe não é uma desvantagem, é uma vantagem. Porque você pode juntar crianças que sabem mais com crianças que sabem menos e a produção delas ajuda as duas. Não é que a que sabe mais vai ajudar aquela que sabe menos. Não é isso. Essa função é do professor. O aluno que sabe mais compartilha com o que sabe menos e vice-versa, porque as crianças todas não sabem as mesmas coisas. Por exemplo, uma posição que diz que os meninos devem trabalhar individualmente, isoladamente, um atrás do outro, em silêncio. Isso, claro, define uma prática pedagógica e uma forma de funcionar e um tipo de conteúdo que o menino vai aprender, ou não. Ou você pode imaginar que a interação entre os pares é um poderoso instrumento à favor da aprendizagem e que então a classe não fica bagunçada, mas ela fica mais barulhenta, menos ordem unida de soldado, e isso é um outro jeito de ensinar. Agora, é preciso não confundir, porque tem gente que acha que deixando fazer bagunça, está sendo construtivista, e não está. Está sendo ‘destrutivista’.

Mas como a senhora imagina que os cadernos possam auxiliar esse movimento de troca de conhecimento, para que todos os meninos sejam contemplados?

TW – Na verdade, existem atividades que englobam todos. A ideia é que se trabalhe com projetos e sequências didáticas, então não é mais a coisa do treinamento de palavras com M antes do P e do B, o que não significa que não é para ensinar isso, mas esse não é o eixo que define as atividades para crianças. Então, por exemplo, você pode propor projetos. Um projeto para o primeiro ano pode ser um livro sobre brincadeiras, quais eram as que os pais brincavam, que os avós brincavam, que eles brincam, o que é parecido, o que é diferente. Isso dá uma publicação da classe. Os meninos têm que localizar isso, eles podem escrever sozinhos o que eles ouvem ou eles podem ler, procurar nos livros as informações. Mesmo quando eles não leem com fluência, eles acham muitas coisas nos livros e nas revistas, muita coisa! É que é difícil acreditar nisso quando você tem a visão de que o menino é um buraco que você tem que preencher com informação.

s

A senhora falava da importância do monitoramento para que o aprendizado avance. Alguns educadores mais românticos criticam que a educação seja medida por índices e metas, questionam um pouco essas avaliações…

TW – Eu até concordaria com eles, porque na verdade as avaliações que são feitas… Para que serve uma avaliação? Se for para ranquear as redes, não serve para nada. Agora, a avaliação tem que devolver para o gestor e para os professores quais são os pontos que nós avançamos, quais são os pontos que ainda precisamos avançar… As avaliações habitualmente feitas, mesmo o PISA, o que elas devolvem aos professores não alimenta a mudança do trabalho deles. Elas têm uma abordagem que não retorna para as salas de aula. Então, só serve para ranquear. No programa Ler e Escrever nós montamos uma avaliação que é externa e que o professor olha o resultado e ele diz: ‘eu fui mal nisso, nisso e nisso.’ Veja bem, ‘eu’, e não os alunos.

E qual é sua posição a respeito do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), por exemplo, que é um índice que ranqueia? Até onde ele é importante para medir a qualidade do nosso ensino?

TW – Ele mede de modo muito grosso e é importante, por exemplo, para que um projeto como o Instituto Chapada de Educação e Pesquisa se diferencie do resto. Agora, ele não volta para a sala de aula, no sentido de que ele não me diz, por exemplo, que eu tenho trinta alunos, mas tenho seis deles que estão com muita dificuldade. Qual é a natureza da dificuldade deles? O que eu tenho que fazer para mexer nisso? O que é que eu não estou sendo capaz de ensinar? E se você está em formação permanente, esses resultados são utilizados para você avaliar os professores, o trabalho, e poder avançar. Mas isso tudo é artesanal. Apesar da rede ser enorme, o trabalho é artesanal. É cara a cara. Não dá para por ninguém em estádio, porque isso não forma professor. O professor você forma quando você olha junto com ele o que o aluno dele fez, o que ele propôs. Então, esse artesanato e o sistema político brasileiro, em que todo mundo tem que resolver todos os problemas do país em quatro anos, impedem que se acumule experiência exitosa, porque mesmo a experiência exitosa é abandonada e entra outra coisa no lugar.

A senhora é educadora há 55 anos. O que pensava que era o papel do professor lá atrás, quando começou a ensinar, e como é que vê esse papel hoje?

TW – Eu saí correndo da educação quando descobri o quanto eu era incompetente, porque eu nem sabia direito se o meu aluno sabia ler ou não. E é assim que é com todos os professores. Então, eu abandonei a educação e fui para a universidade, fui fazer outras coisas. Mas isso é um vício… Na hora do vamos ver, você volta. Eu na verdade não queria fazer outra coisa. Passei oito anos na universidade e aí quando voltei, voltei querendo mudar tudo, certo? Algum tempo depois, na década de 1980, saiu um livro da doutora Emilia Ferrero sobre a psicogênese da língua escrita, e eu lembro que lia aquilo e chorava, e dizia: como eu não vi isso antes? E aí eu virei uma militante da psicogênese. O papel do professor hoje é o mesmo de sempre. Ele tem que ajudar o aluno a sair da lama da ignorância para o céu da competência. É só isso. Nada mais.